Convocada pela primeira vez na história da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), a audiência pública sobre a incorporação do nusinersena, de nome comercial Spinraza, para os tipos tardios da Atrofia Muscular Espinhal (AME), foi inédita também em seu resultado. Depois de uma recomendação final contrária no mês de fevereiro, a comissão foi parcialmente favorável à ampliação do acesso ao tratamento no sistema público na última semana.
A AME é uma doença rara e degenerativa que afeta os neurônios motores, causando dificuldades para respirar, engolir e limitações motoras. Sua forma mais grave e mais prevalente é o tipo I, com início até seis meses de idade. Os tipos II e III são considerados de início tardio, entre seis e 18 meses e após esse tempo, respectivamente. Desconsiderando os casos judicializados, apenas os pacientes do primeiro grupo são atendidos pelo SUS, desde 2019.
A Conitec é o órgão responsável por avaliar quais produtos e medicamentos são ofertados no sistema público, com o objetivo de fazer uma recomendação técnica à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministro da Saúde (SCTIE), responsável pela decisão final. Historicamente, embora não haja essa obrigatoriedade prevista em lei, a secretaria segue os pareceres do colegiado.
Por se tratar de um trâmite inédito, sem detalhamento na regulamentação vigente, a volta do processo para avaliação da comissão após a audiência pública, em reunião extraordinária no dia 12 de maio, foi uma novidade. A princípio, após essa participação social, o resultado seria encaminhado diretamente para a tomada de decisão, sem necessidade de uma nova manifestação.
O pedido para uma nova deliberação foi feito, via despacho, pelo próprio gabinete do secretário Hélio Angotti. No documento, a SCTIE sugeriu três opções de pareceres: pela incorporação dos tipos II e III, pela incorporação apenas do tipo II ou contra a incorporação de ambos.
“Configura-se uma decisão de grande complexidade, que envolve o sofrimento de muitas famílias, suas esperanças, o equilíbrio e a sustentabilidade de todo o sistema de saúde, e a necessidade de contemplar a rápida evolução do cenário tecnológico e científico. Experiências de profissionais de saúde, pacientes e seus familiares foram ouvidas, e ao lado dos valores morais e das evidências, compõem a tríade que nos remete à boa prática da Medicina Baseada em Evidências, tão necessária no SUS. À complexidade da Medicina Baseada em Evidências, soma-se a necessidade de considerar a Saúde Baseada em Evidências, que preza aspectos de saúde pública e do próprio sistema e sua sustentabilidade orçamentária, administrativa e jurídica”, diz o documento da SCTIE.
Virada na Conitec
O plenário da Conitec é composto por sete representantes do ministério, além de um representante do Conselho Federal de Medicina (CFM), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), do Conselho Nacional das Secretarias Estaduais de Saúde (Conass), do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Mesmo após realização de uma consulta pública com o recebimento de quase 6 mil contribuições, a maioria dos presentes havia sido contra o pleito da farmacêutica Biogen, fabricante do Spinraza, no dia 4 de fevereiro. Os apelos feitos pela comunidade de pacientes e por especialistas na audiência pública, realizada no dia 19 de março, resultaram na revisão do posicionamento em maio.
Desta vez, a decisão por maioria simples, com seis votos, foi pela incorporação para pacientes com o tipo II, com diagnóstico até os 18 meses de idade e conforme Protocolo Clínico definido pelo Ministério da Saúde. Foram favoráveis os representantes da ANS, do Conass, do CNS, da SCTIE, da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Os votos contrários foram dos representantes do CFM, do Conasems e da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES).
Em nome da SCTIE, a diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde (DGTIS), Vania Canuto, foi a única a favor da incorporação para o tipo II nas duas votações anteriores. O maior impasse, para os demais integrantes, foi a relação de custo-efetividade envolvendo o tratamento, ou seja, na avaliação deles, havia insegurança para concluir que as melhoras observadas justificariam o alto gasto público previsto.
No cálculo de impacto orçamentário incluído no relatório final da Conitec de fevereiro, o custo incremental decorrente da incorporação de nusinersena para os tipos tardios da doença pode variar de R$ 122 a R$ 265,6 milhões no primeiro ano após a incorporação, podendo chegar a R$ 535,7 milhões no quinto ano.
O impacto acumulado da incorporação para os tipos II e III, em cinco anos, pode variar de R$ 1,4 a R$ 2,1 bilhões.
Angotti ainda precisa publicar sua decisão no Diário Oficial da União (DOU), mas o resultado atual foi considerado positivo para a farmacêutica, apesar de o pleito continuar sendo o acesso amplo, como indicado em bula.
“Para a Biogen, o resultado alcançado nessa etapa é, antes de mais nada, uma vitória dos pacientes, seus familiares, cuidadores, profissionais de saúde e inúmeros outros representantes da sociedade. Nos orgulhamos de poder fazer parte dessa história e congratulamos toda a comunidade por essa recomendação positiva inédita”, diz a nota enviada pela empresa.
Compartilhamento de risco
O processo de ampliação do escopo de incorporação do Spinraza é emblemático por estar diretamente relacionado a uma tentativa de implementação de uma nova forma de acesso, baseada na redução de custos por meio do compartilhamento de risco entre poder público e indústria.
O medicamento foi o primeiro para AME registrado no Brasil, no ano de 2017. No momento, continua sendo o único incorporado no SUS, embora já existam outros dois, fabricados pela Novartis e pela Roche, com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em 2019, a Conitec deu parecer favorável ao fornecimento do nusinersena, mas apenas para pacientes com os tipos I da doença sem necessidade de ventilação mecânica invasiva permanente. A comissão entendeu que os dados sobre os resultados de tratamento para os outros grupos ainda eram preliminares.
À época, na gestão do ex-ministro Henrique Mandetta, houve a promessa de garantir o atendimento aos pacientes excluídos por meio de uma nova política pública. Esse anúncio foi feito em sessão solene no Senado Federal, no dia 24 de abril de 2019. A Portaria nº 1.297, que institui o projeto piloto de compartilhamento de risco, foi publicada no dia 11 de junho.
A proposta foi conduzida pelo ex-secretário de Ciência e Tecnologia Denizar Vianna, com o intuito de trazer previsibilidade orçamentária ao ministério, considerando o volume de demandas judiciais existentes, e de garantir o acesso condicionado ao monitoramento dos pacientes. Dessa forma, dados sobre o uso do medicamento em condições reais poderiam ser consolidados.
O desfecho dessa tentativa ficou para a gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello. Mais de um ano depois da publicação da portaria, quase 500 cadastrados pela própria pasta ainda não tinham recebido o medicamento, e o projeto fracassou em um dos principais objetivos: dar acesso rápido para pacientes com uma doença degenerativa.
Questionado por parlamentares, pela farmacêutica e pela comunidade de pacientes, o Ministério da Saúde concluiu, em agosto de 2020, que a execução do projeto piloto da forma como foi instituído em junho do ano anterior seria inviável devido a divergências jurídicas dentro da pasta. A recomendação dada para a fabricante, então, foi a de tentar seguir novamente pelo caminho tradicional.
O atual titular da SCTIE deixou aberta a possibilidade de assinatura de acordo com base na portaria, desde que houvesse recomendação positiva da Conitec.
Compras e judicialização
Apesar do parecer parcialmente favorável, a tentativa de redesenho do projeto piloto de compartilhamento de risco entre indústria e Ministério da Saúde deve se perder. Após a recomendação final de fevereiro, representantes da farmacêutica apresentaram uma nova proposta comercial, com um desenho tradicional.
O contrato anterior, quando ainda se pretendia fazer o acordo com base na Portaria nº 1.297/2019, tinha o valor de R$ 233 milhões para o fornecimento de 1.660 frascos-ampola com valor unitário de R$ 159 mil. Como a proposta de compartilhamento de risco previa um desconto pela empresa, houve a doação de 194 frascos, o equivalente a R$ 30,8 milhões.
À época da assinatura do contrato, conforme apurou o JOTA, a ideia era que essa aquisição atendesse aos pacientes com o tipo I abarcados pela incorporação tradicional, mas também aos pacientes com os tipos II e III, por meio do projeto piloto.
Mesmo com a falha na proposta inicial, a situação tornou-se financeiramente cômoda para o ministério. Com a entrega do medicamento garantida, as demandas judiciais para os pacientes não contemplados pela incorporação passaram a ser atendidas pelo contrato que teve desconto.
Procurada pela reportagem, a pasta informou que das 1.466 unidades adquiridas (quantidade relativa ao contrato mencionado acima, sem considerar os frascos-ampola doados) foram distribuídas 826, sendo 640 entregues via ações judiciais para os tipos I, II e III da doença.
No dia 16 de março, antes da audiência pública, uma nova compra no valor de R$ 304,6 milhões para o fornecimento de 1.904 frascos-ampola com valor unitário de R$ 160 mil foi fechada.
Fonte: Jota.
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