
Por maioria de votos, o Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) determinou que o paciente adulto e capaz tem direito de recusar transfusão de sangue por motivo de crença religiosa, principalmente nos casos em que se existam tratamentos alternativos e eficazes. No caso em questão, o paciente é uma testemunha de Jeová. O tema foi julgado no mérito do Incidente de Assunção de Competência (IAC).
Em sua decisão, o relator, desembargador Samuel Meira Brasil Junior, destacou a viabilidade do procedimento alternativo à transfusão sanguínea, dentre eles o gerenciamento de sangue do paciente (PBM), recomendado com ”satisfatório desempenho clínico e significativa redução de custos”.
Afirmou, ainda, que apesar de se falar da necessidade de transfusão de sangue, a ponto de dizer que é obrigatório o paciente consentir, o caso não deve ser levado dessa forma. Assim, o desembargador afirmou que existe normalmente na sociedade ”expressiva liberdade de escolha por parte do paciente, que ninguém questiona e afirma sua obrigatoriedade”.
O relator pontuou também que há de se diferenciar o compulsório, que é forçado e não há opção de escolha, do obrigatório, em que necessariamente deve ser feito, sob pena de punição. ”O exemplo já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quanto a essa diferença foi usado no julgamento sobre a vacinação, que foi considerada obrigatória e que permite a imposição de sanções, como proibição de viajar, ingressar em recintos. Mas ninguém foi levado à força, sem opção de escolha”, afirmou Meira Brasil Jr.
‘Impacto da transfusão na vida dos pacientes religiosos’
No ponto de vista do desembargador, um outro fator bastante relevante e que deve ser levado em consideração é o impacto que a transfusão de sangue provoca na vida dos pacientes religiosos. Segundo ele, essa questão é ”sensível” e chega a ser ”dramática em algumas situações”.
”É comum pacientes transfundidos serem levados ao isolamento e, em casos extremos, até mesmo a pensamentos suicidas, muito embora não haja estímulo para isso”, analisou o relator.
Desse modo, ele considerou que não se deve impor a um paciente religioso um procedimento que significa alijá-lo de seu mundo social e espiritual. Reiterou, ainda, que principalmente nos casos em que há procedimento alternativo e eficaz, não se deve condenar ao paciente ao ”sofrimento extremo do isolamento e rejeição por sua própria família, por seus filhos, pais e cônjuges”.
No entanto, o desembargador também assinalou que, assim como a autodeterminação do paciente e a convicção religiosa devem ser amplamente asseguradas, também deve ser protegida a consciência médica, não sendo possível responsabilizar o profissional de medicina por suas decisões técnicas, especialmente quando tomadas em cirurgias não eletivas, em situações de emergência ou quando o procedimento alternativo não for eficiente.
”Assim, é necessário o reconhecimento da proteção às duas categorias tanto pacientes quanto médicos , em interpretação integrativa da Constituição”, pontuou o relator.
No julgamento, os desembargadores propuseram a fixação das seguintes teses, com efeito vinculante:
I. Os pacientes que recusarem transfusão de sangue por motivo de crença religiosa (testemunhas de Jeová) têm direito a escolher procedimento alternativo viável e eficiente;
II. Essa escolha exige consentimento informado específico para o procedimento, através da manifestação de vontade válida, inequívoca, livre e informada do paciente;
III. O paciente que optar, livre e conscientemente, por procedimento alternativo viável e eficiente não pode ser obrigado a tratamento diverso;
IV. Os profissionais e os hospitais devem buscar procedimentos viáveis, eficazes e compatíveis com a liberdade religiosa de cada paciente, como, por exemplo, o PBM;
V. Os profissionais médicos não podem ser responsabilizados por suas decisões técnicas em situação de emergência ou quando não existir procedimento alternativo viável, com a mesma eficácia;
VI. O Poder Público e os hospitais devem promover políticas públicas para respeitar a convicção religiosa e, simultaneamente, o direito à vida e à saúde. Para isso, devem procurar oferecer procedimentos alternativos à transfusão de sangue, como o PBM, sempre que forem viáveis e eficazes;
VII. O Poder Público deve criar e regulamentar, com o apoio do Conselho de Medicina, uma central digital que contenha as diretivas antecipadas de vontade (Testamento Vital), que ficarão disponíveis aos profissionais da saúde.
Para a advogada Eliza Akiyama, que representa a Testemunha de Jeová, essa decisão é um marco na jurisprudência nacional, estabelecendo um precedente vinculante de respeito aos direitos humanos dos pacientes.
”Ao determinar o respeito à escolha dos pacientes Testemunhas de Jeová por outro tratamento com eficácia cientificamente comprovada e estabelecer que o Poder Público deve oferecer procedimentos alternativos à transfusão de sangue, como o PBM, o TJES promove o cumprimento da diretriz mundial da Organização Mundial da Saúde, publicada no ano de 2021, que determina que as técnicas de tratamento sem transfusão de sangue devem ser implementadas com urgência por serem clínica, ética e financeiramente mais vantajosas, contribuindo para o avanço da saúde pública”, disse a advogada ao JOTA.
O processo tramita com o número 0020701-43.2017.8.08.0048.
Manifestação da PGR no RE 979.742/AM no STF
A decisão do TJES vai de encontro com uma manifestação protocolada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) no Recurso Extraordinário (RE) 979.742/AM no Supremo e de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, do Tema 952, que analisa o possível conflito entre a liberdade religiosa e o dever do Estado de assegurar prestações de saúde universais e igualitárias.
No caso concreto, a parte autora requer o custeio de uma cirurgia (artroplastia total primária cerâmica) fora do seu domicílio — neste caso, do Amazonas para São Paulo. Conforme deferida a cautelar, informou que o Estado do Amazonas, por meio da Fundação Hospital Adriano Jorge, agendou para 7 de abril de 2014 a realização da cirurgia, mas que, em razão da sua recusa em aceitar transfusão de sangue alogênico por motivos religiosos, o hospital deixou de realizar o procedimento.
De acordo com a manifestação da PGR, a discussão relacionada à obrigação de o poder público custear procedimentos alternativos à transfusão de sangue, em razão do legítimo exercício do direito à liberdade religiosa, demanda a ”análise preliminar da legitimidade da União para figurar no polo passivo de ações judiciais que versem sobre protocolos alternativos em procedimentos disponibilizados pelo sistema público de saúde”.
No texto do recurso, a PGR cita que as testemunhas de Jeová creem que introduzir sangue de outro ser humano (alogênico) no corpo viola as leis de Deus, tendo em vista o teor das passagens bíblicas. Por isso, entendem que a interdição à transfusão de sangue alogênico há de ser respeitada mesmo em casos emergenciais, nos quais exista risco de morte.
Entretanto, apesar da recusa, ”aceitam submeter-se a tratamentos e alternativas médicas compatíveis com a interpretação que fazem das passagens bíblicas relevantes, seja pela utilização de outros meios que dispensem a transfusão, seja pela transfusão de sangue do próprio paciente”.
”O exercício da liberdade de crença, pela recusa a tratamento de transfusão pelos cidadãos que professam a religião Testemunha de Jeová, difere da negativa pura e simples ao bem-estar do indivíduo. O que se pretende é a compatibilização entre o direito à saúde e a liberdade de professar a religião que bem entender, no legítimo exercício da autonomia da vontade, dentro da conformação de uma política pública já existente”, afirma a PGR na manifestação.
Desse modo, a Procuradoria defende que o dever do Poder Público de custear meios alternativos para a realização de procedimento sem transfusão de sangue alogênico vai além de garantir o pleno exercício da liberdade de crença. ”Se existe a possibilidade de o Poder Público efetivamente realizar procedimento médico sem a transfusão de sangue, porque já incorporado ao sistema público de saúde, há de ser garantida a sua realização como forma de preservar o direito à liberdade religiosa”, pontuou.
A PGR ainda menciona que mais do que uma escolha do paciente quanto ao protocolo que deseja seguir, trata-se de buscar o meio pelo qual se pode concretizar, de forma mais adequada, os direitos à saúde e à manifestação religiosa. ”Negar ao indivíduo o acesso ao serviço público incorporado nacionalmente e disponibilizado por outra unidade da federação afronta o princípio do acesso igualitário e universal aos serviços e ações de saúde. Viola, ainda, a liberdade de crença, a obrigação estatal de assegurar a integridade física e pessoal e a vedação ao tratamento discriminatório em razão da procedência regional e religiosa”, destacou.
Fonte: JOTA Leia a matéria completa
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